sexta-feira, 23 de maio de 2014

Livro 3 O cavalo e seu menino Capítulo 15 - Rabadash, o Ridículo

Uma curva na estrada colocou-os em campo aberto; lá, do outro lado de planuras verdes, abrigado dos ventos do norte por uma alta serra coberta de matas, estava o castelo de Anvar. Muito antigo, fora construído de pedras pardo-avermelhadas.
Antes de chegarem ao portão, viram o rei Luna, que lhes vinha ao encontro, nada parecido com o rei imaginado por Aravis: usava roupas muito velhas, pois acabava de chegar de uma visita aos canis, na companhia de seus caçadores. Mas a reverência com que saudou Aravis ao segurar-lhe a mão era digna de um imperador.
— Minha gentil senhorita, de todo o coração nós lhe damos as boas-vindas. Minha mulher, se estivesse viva, a receberia com mais carinho, mas não o faria de maior boa vontade. Sinto que lhe hajam sobrevindo infortúnios que a levaram para longe da casa paterna, o que lhe deve decerto magoar. Meu filho Cor contou-me sobre as aventuras por que passaram juntos e me falou de sua bravura.
— Tudo se deve a ele, senhor — respondeu Aravis. — Pois foi ele quem correu
para o Leão e me salvou.
— Hem? Que história é esta? — perguntou o rei Luna com os olhos brilhantes. — Não conheço esta parte da história.
Ficou sabendo por intermédio de Aravis. Cor, desejoso que a história fosse divulgada, mas sentindo que não cabia a ele mesmo contá-la, gostou dela muito menos do que esperava, chegando a achá-la um pouco sem graça. Mas o pai é que se deliciou, recontando-a várias vezes durante algumas semanas; a tal ponto que Cor desejou que o episódio nunca tivesse acontecido.
O rei mostrou-se igualmente cortês com Huin e Bri, fazendo-lhes uma porção de perguntas sobre suas famílias e onde viviam em Nárnia antes de serem capturados. Os cavalos conservaram-se um tanto calados, pois não estavam habituados a ser tratados como iguais por humanos adultos. Com Aravis e Cor era diferente.
Naquele momento a rainha Lúcia saiu do castelo e aproximou-se do grupo. Disse o rei Luna a Aravis:
— Minha querida, apresento-lhe uma boa amiga de nossa casa, e ela própria estava providenciando para que os aposentos fossem condignamente preparados.
— Quer vê-los? — perguntou Lúcia, dando um beijo em Aravis.
Foi amizade à primeira vista; e se foram, conversando sobre quartos e roupas, coisas sobre as quais as moças trocam ideias nessas ocasiões.
Depois do almoço no terraço (aves frias, pastelão frio, vinho, pão e queijo), o rei Luna franziu a sobrancelha, suspirando:
— Xii! Ainda temos em nossas mãos aquele lamentável Rabadash; temos de decidir o que fazer com ele.
Lúcia estava sentada à direita do rei e Aravis à esquerda. O rei Edmundo numa cabeceira e o lorde Darin na outra. Dar, Peridan, Cor e Corin estavam no mesmo lado que o rei.
— Vossa Majestade tem todo o direito de decepar-lhe a cabeça — opinou Peridan. — Um assalto como este colocou Rabadash no nível dos assassinos.
— Pura verdade — disse Edmundo. — Mas até um traidor pode corrigir-se. Conheço um. — E assumiu um ar pensativo.
— Matar esse Rabadash é quase o mesmo que fazer guerra com o Tisroc — falou Darin.
— Às favas com o Tisroc! — disse o rei Luna. — Sua força está nos números, e números não atravessam o deserto. O que não tenho é estômago para matar homens (mesmo traidores) a sangue-frio. Cortar o pescoço dele em combate teria sido um prazer. Mas a coisa agora é diferente.
— A meu ver — interveio Lúcia — Vossa Majestade deveria conceder a ele outra chance. Deixe-o partir livremente, sob a promessa rigorosa de agir com decência no futuro. Pode ser que cumpra a palavra.
— Talvez os macacos acabem honrados — disse Edmundo. — Mas, pelo Leão, se ele quebrar a promessa, que lhe cortemos logo a cabeça em combate limpo.
— Vamos tentar — disse o rei, virando-se para um serviçal: — Traga o prisioneiro.
Rabadash foi trazido preso a suas correntes. Quem o visse era capaz de imaginar que passara a noite em horrível calabouço, sem água nem comida. Na verdade, ele estivera encerrado num quarto bem confortável, e fora servido com uma ceia excelente. Mas, muito azedo para tocar na ceia, passara a noite sapateando, uivando e amaldiçoando, e não podia mesmo estar na sua melhor aparência.
— Não preciso informar a Vossa Alteza — disse o rei — que, pelas leis das nações como também por todas as razões de uma política sensata, temos todo o direito à sua cabeça. Apesar de tudo, levando em consideração a sua juventude e a sua má-criação, à qual faltam ainda gentileza e cortesia, estamos dispostos a enviá-lo em liberdade, desarmado, sob as seguintes condições: primeiro...
— Maldito cão sarnento! — cuspiu Rabadash. — Acha que aos menos ouvirei as suas condições? Eu!? Fala de educação e não-sei-o-que-mais! Muito fácil, com um homem acorrentado! Arranque de mim estas correntes vis, me dê uma espada, e quem ousar que venha bater-se comigo.
Quase todos os senhores puseram-se de pé. Gritou Corin:
— Pai! Posso dar um soco na cara dele? Por favor!
— Paz! Majestades! Senhores! — disse o rei Luna. — Será que não temos a educação necessária para ouvir com tranquilidade os insultos de um trapalhão? Sente-se, Corin, ou saia da mesa. Peço mais uma vez a Vossa Alteza que escute as nossas condições.
— Não escuto condições de bárbaros e bruxos — respondeu Rabadash. — Ninguém ouse tocar num fio do meu cabelo. Cada insulto que me lançam será vingado com oceanos de sangue. Terrível será a vingança do Tisroc; não perdem por esperar. Matem-me, no entanto, e as fogueiras e torturas das terras calormanas ainda farão o mundo tremer daqui a mil anos. Cautela! Cautela! O raio de Tash cai de cima!
— E às vezes fica preso no caminho por um gancho! — disse Corin.
— Pare com isso, Corin — disse o rei. — Só insulte um homem mais forte do que você. Assim, Alteza, por favor.
— Que idiota este Rabadash! — suspirou Lúcia.
E logo Cor pôs-se a imaginar por que todos tinham se levantado e ficado muito quietos. Também fez o mesmo, mas só depois entendeu o motivo: Aslam estava entre eles, embora ninguém tivesse percebido a sua chegada. Rabadash estremeceu quando o vasto vulto do Leão desfilou entre ele e seus acusadores. E o Leão falou:
— Rabadash, cuidado! Seu destino anda próximo, mas talvez ainda possa evitá-lo. Esqueça o seu orgulho (do que você pode orgulhar-se?) e a sua ira (quem lhe fez mal?) e aceite a compaixão destes bondosos reis.
Rabadash então revirou os olhos e espichou a boca numa horrível careta, como um tubarão, e abanou as orelhas para cima e para baixo (não é difícil aprender a fazê-lo).
Sempre achara isso muito eficiente entre os calormanos. Os mais bravos tremiam quando ele fazia essas caras; os mais simples caíam no chão; e os mais sensíveis geralmente desmaiavam. Rabadash só esquecera uma coisa: muito fácil é apavorar quem se pode mandar cozinhar vivo com uma palavra. Na Arquelândia, porém, as caretas não produziam o menor efeito. Lúcia chegou até a pensar que ele estava passando mal e ia ficar pior.
— Diabo! Diabo! Diabo! — guinchava o príncipe. — Sei quem você é. Você é o espírito mau de Nárnia. O inimigo dos deuses. Sabe com quem está falando? Sabe, fantasma? Descendo de Tash, o inexorável, o irresistível. Caia sobre você a maldição de Tash! Raios em forma de escorpião chovam sobre você. As montanhas de Nárnia serão reduzidas a cinzas. O...
— Calma, Rabadash — disse Aslam, com placidez. — O destino está próximo. Está à porta. Já levantou o trinco.
— Caiam os céus! — guinchou Rabadash. — Escancare-se a terra! Sangue e fogo entupam o mundo! Pois fiquem sabendo que nem assim descansarei, até arrastar para o meu palácio, pelos cabelos, essa rainha bárbara, filha de cachorros, a...
— Chegou a hora — disse Aslam.
Para seu horror supremo, Rabadash viu que todos estavam às gargalhadas.
Não era possível fazer outra coisa, a não ser dar risadas. Rabadash estivera abanando as orelhas o tempo todo, e, assim que Aslam disse “Chegou a hora!”, suas orelhas começaram a ficar mais compridas e mais pontudas e acabaram cobertas de pelo cinzento. E, enquanto todos se indagavam onde já tinham visto orelhas como aquelas, também a cara de Rabadash começou a mudar. Mais comprida... mais larga... mais olhuda... Nariz afundado na cara (ou era uma cara se inchando toda e virando um narigão?). Tudo peludo. Os braços foram ficando compridos, compridos, até que as mãos tocaram no chão. Só que não eram mãos: eram cascos. Quatro cascos. Sumiram as roupas, debaixo de gargalhadas e de aplausos (que fazer?), pois agora Rabadash era simplesmente, inequivocamente, um burro. O terrível é que a sua fala humana durou um momento além da figura humana, e, assim, quando percebeu a transformação, berrou:
— Ó, burro não! Piedade! Burro não! Até cavalo serve... cavalo ainda aceito... Burro não! rem... rê... rô... ri... rá...
E assim as palavras se perderam num vasto zurro de burro.
— Agora me ouça, Rabadash — falou Aslam. — A justiça é mesclada de compaixão. Você não será um asno para sempre.
O burro espichou naturalmente as orelhas... o que também foi tão engraçado que todos caíram outra vez na gargalhada. Tentavam ficar quietos, mas não era possível.
— Você pediu o auxílio de Tash — prosseguiu Aslam — e no templo de Tash será curado. Suba ao altar de Tash em Tashbaan, no Festival de Outono, este ano, e lá, à frente de todos, perderá sua forma de asno, e todos saberão que o asno é na verdade o príncipe Rabadash. Mas, enquanto viver, se uma só vez afastar-se mais de dez quilômetros do templo de Tashbaan, voltará a ser como é agora. E de uma recaída jamais ficará bom.
Fez-se um curto silêncio. Depois todos se agitaram e olharam uns para os outros, como se estivessem acordando. Aslam havia partido. Só restava um lampejo no ar e na relva, e júbilo nos corações, o que lhes dava a certeza de que não fora um sonho. Além do mais, o burro estava lá na frente deles.
O rei Luna, o maior coração entre todos os homens, ao ver o inimigo nessas lamentáveis condições, esqueceu toda a sua ira.
— Alteza — disse — estou sinceramente sentido que as coisas tenham chegado a este extremo. Não dependeu de nós, e Vossa Alteza sabe disso. Teremos o maior prazer em providenciar o seu embarque para Tashbaan para... para aviar a receita prescrita por Aslam. Terá na viagem todo o conforto que permitir a sua atual situação: o melhor barco de transporte de gado... as cenouras mais frescas e...
Mas um zurro ensurdecedor e um coice na perna de um guarda demonstraram claramente que essas gentis ofertas foram recebidas com ingratidão.
E aqui, para tirá-lo do caminho, é melhor acabar com a história de Rabadash. Enviado de volta, compareceu ao Festival de Outono, tornando-se novamente homem. Umas quatro ou cinco mil pessoas viram a transformação, e o caso não pôde ser silenciado. Depois da morte do velho Tisroc, quando Rabadash se fez tisroc dos calormanos, tornou-se o mais pacífico tisroc da história do país. Não ousando afastar-se mais de dez quilômetros, jamais podia ir à guerra, e não desejava que seus tarcaãs conquistassem fama guerreira às suas custas, pois é assim que os tisrocs são destronados. Apesar do egoísmo dos seus motivos, foi bem mais cômodo para os pequenos países vizinhos.
Seu próprio povo jamais se esqueceu de que ele havia sido um burro. Durante o seu reinado foi cognominado Rabadash, o Pacificador, mas, depois da sua morte, passou a ser Rabadash, o Ridículo. Ainda hoje, nas escolas calormanas, se alguém faz alguma coisa bastante idiota, é chamado de Rabadash.
Em Anvar todo mundo estava contente por ocasião de um grande acontecimento: uma festa na esplanada do castelo, com dezenas de lanternas juntando-se à luz do luar. O vinho jorrava, contavam-se histórias, faziam-se gracejos; então fez-se silêncio, e o poeta do rei, acompanhado por dois tocadores de rabeca, foi para o centro do picadeiro.
Aravis e Cor prepararam-se para uma chatice, pois só conheciam a poesia dos calorma-nos, e agora você já sabe de que tipo ela é. Mas, ao primeiro trinado das rabecas, foi como se um foguete lhes passasse pela cabeça. O poeta cantou a grande balada do Belo Olvin e como, vendo o gigante Piro, conseguiu transformá-lo em pedra (daí a origem do Monte Piro, pois se tratava de um gigante de duas cabeças), para casar-se com a dama Liln. Quando acabou, desejavam que a balada recomeçasse.
Não sabendo cantar, Bri contou a história da Batalha de Zalindreh. Lúcia contou mais uma vez (só Aravis e Cor não a conheciam) a história d’O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, na qual se narra como Edmundo, Susana, Pedro e ela chegaram a Nárnia.
Depois chegou o momento em que o rei Luna disse que as crianças deviam ir para a cama, devido ao adiantado da hora. E acrescentou ainda:
— Amanhã, Cor, você percorrerá comigo todo o palácio, examinando os seus pontos fortes e fracos, pois a você caberá guardá-lo quando eu me for.
— Mas Corin é que será o rei, pai — protestou Cor.
— Nada disso, rapaz — replicou o rei Luna. — Você será o meu herdeiro. Cabe a você a coroa.
— Mas não quero a coroa — disse Cor. — Prefiro muito mais...
— Não interessa, Cor, o que você prefere. É a lei.
— Mas, se somos gêmeos, somos da mesma idade!
—Nada disso — respondeu o rei, rindo-se. — Um tem de vir primeiro. Você é mais velho do que Corin vinte minutos. E mais ajuizado também, espero. — Olhou para Corin, piscando.
— Mas, pai, o senhor não pode escolher quem quiser para rei?
— Não. O rei obedece às leis, pois as leis o fizeram rei.
— Puxa vida! — disse Cor. — Não quero a coroa de jeito nenhum. Olhe aqui, Corin... a culpa não é minha. Nunca pensei que acabaria passando a perna no seu reinado.
— Viva! Salve! — gritou Corin. — Não tenho de ser rei! Não tenho de ser rei! Vou ser príncipe a vida toda. Os príncipes é que se divertem!
— É ainda mais verdade do que ele pensa, Cor — falou o rei Luna. — Pois ser rei é isto: ser o primeiro em todos os combates e o último em todas as retiradas. Quando houver fome no país (o que às vezes acontece nos anos piores), o rei deve alimentar-se frugalmente, e rir mais alto do que ninguém diante de uma refeição parca.
Na escada, a caminho do quarto de dormir, Cor ainda perguntou a Corin se era possível fazer alguma coisa. E a resposta foi a seguinte:
— Se você disser mais uma palavra sobre isso, eu lhe meto o braço.
Seria simpático terminar a história dizendo que, depois disso, os dois irmãos nunca discordaram a respeito de mais nada; mas sinto dizer que não foi bem assim. Na verdade, eles discutiam e brigavam como todos os outros irmãos. As brigas sempre terminavam com Cor derrubado no chão. Pois, embora mais tarde Cor se revelasse mais perigoso na guerra, com a espada, ninguém nas terras do Norte jamais boxeou melhor do que Corin.
Foi assim que ganhou o apelido de Mão de Ferro. Conta-se, ainda hoje, a grande façanha que realizou contra o Urso Relapso do Pico da Tempestade, que era na verdade um animal falante que retornara à selvajaria.
Num dia de inverno, Corin escalou a montanha pelo lado de Nárnia e lutou aos socos com o urso por trinta e três assaltos. Por fim, esmurrado nos olhos, e já sem poder enxergar mais nada, o urso acabou regenerando-se.
Aravis também teve muitas discussões (e, creio, até brigas) com Cor, mas os dois sempre passavam por cima. Anos mais tarde, já estavam tão acostumados a brigar e fazer as pazes, que se casaram, salvando assim as aparências.
Depois da morte do rei Luna, tornaram-se rei e rainha de Arquelândia. Áries, o Grande, o mais famoso de todos os reis do país, era filho deles.
Bri e Huin viveram felizes até uma idade avançada e também se casaram, mas não um com o outro. E não passavam muitos meses sem que viessem a trote (juntos ou separados) para uma visita aos amigos de Anvar.

Livro 3 O cavalo e seu menino Capítulo 14 - Lição de sabedoria para Bri

Olhando para o tanque, o eremita pôde contar para Aravis e os cavalos que Shasta não fora morto nem ferido, e de que maneira afetuosa fora recebido pelo rei Luna. Mas como só podia ver a distância, e o tanque não reproduzia sons, ignorava as palavras pronunciadas. Já não valia a pena olhar para as imagens do tanque, agora que a luta terminara.
Na manhã seguinte, enquanto o eremita permanecia dentro de casa, os três discutiam o que deveriam fazer.
— Para mim já chega — disse Huin. — O eremita tem sido muito bom para nós, e sou-lhe muito grata, mas estou ficando gorda como uma potranquinha de estimação, comendo o dia inteiro sem fazer exercícios. Devemos seguir para Nárnia.
— Hoje não, madame — disse Bri. — Não gosto de sair às pressas. Não acha que a gente devia ficar mais um pouco?
— Antes de tudo precisamos encontrar Shasta para dizer adeus... e pedir desculpas — disse Aravis.
— Isso mesmo! — falou Bri, com grande entusiasmo. — Era o que eu ia dizer.
— É claro — concordou Huin. — Espero que ele continue em Anvar. Damos uma passada lá e nos despedimos dele. Fica no caminho. Só não entendo por que não partimos imediatamente. Afinal, acho que a intenção de todos nós é chegar a Nárnia...
— Acho que sim — disse Aravis.
Ao começar a imaginar o que faria exatamente quando chegasse a Nárnia, a menina sentiu-se um pouco sozinha.
— Naturalmente — foi logo dizendo Bri. — Mas não há necessidade de sair às carreiras, se é que estão me entendendo.
— Pois não estou entendendo — replicou Huin. — Por que não quer ir?
— Bru-ru — murmurou Bri. — Bem, não está vendo, madame... trata-se de uma ocasião importante... é a nossa volta à pátria... a entrada na sociedade... a melhor sociedade... é imprescindível que causemos uma boa impressão... o que talvez seja difícil com a nossa aparência atual...
Huin deu uma risada equina.
— É a sua cauda, Bri! Já vi tudo! Você está querendo esperar que a sua cauda cresça novamente. E nem sabemos se em Nárnia estão usando caudas compridas. Francamente, Bri, você é tão vaidoso quanto aquela tarcaína de Tashbaan.
— Que besteira, Bri — falou Aravis.
— Pela juba do Leão, tarcaína, não sou desse tipo — respondeu Bri, indignado. — Apenas guardo respeito por mim mesmo e pelos cavalos da minha espécie, nada mais.
— Bri — retornou Aravis, que não estava muito interessada no corte da cauda — há muito tempo que desejo fazer-lhe uma pergunta: por que vive jurando pelo Leãoou pela juba do Leão? Pensava que tinha horror de leão.
— E tenho. Mas quando falo do Leão estou me referindo a Aslam, grande redentor de Nárnia, que nos livrou do inverno e da feiticeira. Todos os narnianos juram por ele!
— Mas ele é um leão?
— É claro que não é um leão — respondeu Bri, bastante chocado.
— Pelas histórias que contam em Tashbaan, ele é um leão — replicou Aravis. — Se não é um leão, por que o chamam de leão?
— Não pode entender isso na sua idade — respondeu Bri. — E mesmo eu, que não passava de um potrinho quando saí de lá, também não entendo muito bem.
(Bri estava virado de costas para a sebe ao dizer isso, e as outras duas o encaravam. Falava com uma certa superioridade, com os olhos semicerrados. Por isso não notou a mudança de expressão de Aravis e Huin.
Estas tinham bons motivos para abrir a boca e arregalar os olhos, pois um enorme leão havia pulado sobre o muro verde; um leão com o amarelo mais brilhante, um leão mais belo, mais assustador e maior do que todos os outros leões. Saltou para dentro do pátio e caminhou para Bri, sem fazer ruído.
Huin e Aravis, como se estivessem congeladas, também não faziam o menor ruído.) Bri continuou:
— Sem dúvida, quando falam dele como sendo um leão, estão querendo dizer que é forte como um leão. Mas é falta de respeito. Se ele fosse um leão, seria um animal como qualquer um de nós. Ora essa! (E Bri começou a rir.) Se fosse um leão, teria de ter quatro patas, uma cauda, e suíças!... Rá, ru, ru. Socorro!
Pois quando acabara de falar suíças fora tocado por uma delas na orelha. Bri disparou como flecha para o lado oposto do pátio e então virou-se; o muro era alto demais, e ele não tinha por onde fugir. Aravis e Huin correram atrás. Houve um segundo de intenso silêncio.
Huin, embora tremesse da cabeça aos pés, deu um relincho esquisito, e foi para perto do leão:
— Por favor, você é tão bonito. Pode me comer, se quiser. Melhor ser devorada por você do que por um outro qualquer.
— Filha querida — respondeu Aslam, beijando-lhe o focinho aveludado — sabia que você bem cedo chegaria até mim. Que a alegria a ilumine.
Ergueu a cabeça e falou mais alto:
— Bri, meu pobre, meu orgulhoso e assustado cavalo, chegue perto de mim. Mais perto, filho. Não ouse não ousar. Toque-me. Aqui estão as minhas patas, aqui está a minha cauda, aqui estão as minhas suíças. Sou um verdadeiro animal.
— Aslam — disse Bri, com a voz estremecida — acho que sou um estúpido.
— Feliz o cavalo que sabe disso ainda na juventude. Ou o humano. Chegue mais perto, Aravis, minha filha. Veja! Minhas patas são de veludo. Não precisa temer agora.
— Agora, senhor? — disse Aravis.
— Agora! Sou o único Leão que você encontrou em todos os seus caminhos. Sabe por que a feri?
— Não, senhor.
— As arranhaduras nas suas costas, uma por uma, dor por dor, sangue por sangue, são iguais aos lanhos feitos nas costas da escrava de sua madrasta, em razão da droga que a fez dormir. Você precisava saber o que é isso.
— Senhor...
— Pode falar, minha filha.
— Ela ainda pode ser punida por minha causa?
— Criança, estou lhe contando a sua história, não a dela. A ninguém será contada a história do outro. — Sacudiu a cabeça e falou ainda mais alto: — Divirtam-se, meus pequeninos. Breve nos encontraremos outra vez. Mas antes disso receberão uma visita.
De um salto pulou por cima do muro e desapareceu.
Estranhamente, não sentiram a menor vontade de conversar sobre ele; cada um saiu por um lado, caminhando para cá e para lá na relva quieta, falando consigo mesmo.
Uma hora depois os cavalos estavam comendo alguma coisa boa que o eremita lhes preparara. Aravis, ainda caminhando, pensativa, foi surpreendida por um som agudo de trompa do lado de fora.
— Quem é?
— Sua Alteza, o príncipe Cor, da Arquelândia — respondeu uma voz.
Aravis abriu o portão, cedendo passagem aos estrangeiros. Dois soldados entraram em primeiro lugar, postando-se com alabardas nos dois cantos. Entraram em seguida um arauto e o trompetista.
— Sua Alteza Real, o príncipe Cor da Arquelândia, solicita uma audiência com a dama Aravis — disse o arauto.
E aí fizeram reverência ao príncipe que entrava. Toda a comitiva retirou-se, fechando o portão.
O príncipe fez uma reverência, bastante desajeitada para um príncipe. Aravis respondeu à maneira dos calormanos e o fez com capricho, pois aprendera isso na escola.
Só então reparou no príncipe.
Um simples rapazinho. Sem chapéu, tinha os cabelos louros envolvidos num aro de ouro. Sua primeira túnica era de finíssima cambraia, e a de baixo era de um vermelho reluzente. Trazia a mão esquerda enfaixada.
Aravis olhou duas vezes antes de falar, espantada:
— Não é possível! É Shasta!
Shasta ficou logo muito vermelho e começou a falar rapidamente:
— Olhe aqui, Aravis, espero que não pense que essa coisa toda foi feita para impressioná-la; ou que fiquei diferente ou besta a esse ponto. Queria vir com minhas roupas de sempre, mas botaram fogo nelas e meu pai me disse...
— Seu pai? — estranhou Aravis.
— Pelo jeito, o rei Luna é meu pai. Dava para pensar... Corin é a minha cara. Somos gêmeos, entende? E meu nome não é Shasta, é Cor.
— Cor é um nome mais bonito do que Shasta — disse Aravis.
— Nomes de irmãos são sempre assim na Arquelândia. Como Dar e Darin.
— Shasta... quero dizer Cor — falou Aravis. — Quero lhe dizer uma coisa, e tem de ser agora. Desculpe por ter sido pedante. Mas pode acreditar que fiquei arrependida antes de saber que você era um príncipe. Honestamente! Foi quando você enfrentou o Leão.
— Aquele Leão não tinha a intenção de matá-la — disse Cor.
— Já sei disso.
Por um momento os dois ficaram calados e sérios, certos de que já sabiam tudo sobre Aslam. Aravis lembrou-se da mão enfaixada do amigo:
— Você participou de uma batalha? Isso aí é um ferimento de guerra?
— Só um arranhão — respondeu Cor, usando pela primeira vez um certo tom senhorial. Mas daí a pouco caiu na risada: — Se quer mesmo saber a verdade não é um ferimento de guerra coisa nenhuma; tive um pouco de pele arrancada; isso acontece a qualquer um, mesmo que não chegue perto de uma batalha.
— De qualquer forma você entrou na batalha. Deve ter sido formidável.
— Não é o que você pensa — replicou Cor.
— Mas Sha... Cor, você ainda não me disse nada sobre o rei Luna, e como ele descobriu quem você é.
— Melhor a gente sentar-se — disse Cor. — É uma história meio comprida. Para começo de conversa: papai é um ótimo sujeito. Mesmo que não fosse o rei. Mesmo que eu tenha de passar agora por essa coisa horrível que se chama educação, foi muito bom ter encontrado meu pai. Vamos à história. Corin e eu somos gêmeos. Uma semana depois de nascermos, nós dois fomos levados a um sábio centauro de Nárnia, para receber uma bênção ou coisa parecida. O tal centauro era um profeta muito bom, como muitos outros centauros. Você talvez ainda não tenha visto um centauro. Havia alguns na batalha de ontem. Gente fabulosa, mas ainda não me acostumei de todo com eles. Aravis, pode estar certa de uma coisa: a gente ainda vai ter que se acostumar com uma porção de coisas nestas terras do Norte.
— É, sem dúvida. Mas conte a história.
— Bem, logo que chegamos, o tal centauro olhou para mim e disse: “Um dia chegará em que este menino salvará a Arquelândia do maior perigo que ela já enfrentou.” Minha mãe e meu pai ficaram muito contentes. Mas havia alguém presente que não gostou. Era um sujeito chamado lorde Bar, que foi chanceler do meu pai. Ao que parece, ele tinha feito alguma coisa errada... peculato ou uma palavra parecida... Não entendi muito bem esta parte da história... Papai teve de demitir o tal lorde. Mas não fez mais nada contra ele, e o sujeito continuou vivendo por lá. Mais tarde ficaram sabendo que ele recebia dinheiro do Tisroc e já tinha fornecido uma porção de informações secretas para Tashbaan.
“Sabendo que eu ia salvar o país de um grande perigo, resolveu me tirar do caminho. Fui sequestrado, não sei bem como. Estava tudo preparado: um navio, tripulado com gente dele, estava à nossa espera, pronto para zarpar. Papai, quando soube, já um pouco tarde, começou a persegui-lo, mas quando chegou à praia lorde Bar já estava em alto-mar. Então, meu pai embarcou num navio de guerra. Durante seis dias perseguiu o galeão do bandido; no sétimo houve a batalha. Uma grande batalha, desde as dez horas da manhã até o sol sumir. Nossa gente aprisionou o galeão. Eu não estava lá! O lorde Bar morreu na batalha, mas antes dera ordens para que um oficial me levasse numa das canoas do navio. E essa canoa nunca mais foi vista. Mas só pode ter sido a mesma que Aslam (ele parece estar por trás de todas as histórias) empurrou para a praia para que Arriche me apanhasse. Gostaria de saber o nome desse oficial, pois deve ter morrido de fome para que eu vivesse.
— Acho que Aslam aqui diria: “Isso é história do outro.” — Foi o primeiro comentário de Aravis.
— Não me lembrava disso — falou Cor.
— Só estou imaginando como vai se realizar a profecia — disse Aravis — e de qual grande perigo você irá livrar a Arquelândia.
— Bem — disse Cor, um tanto encabulado — eles acham, pelo jeito, que eu já fiz isto.
Aravis bateu palmas:
— É claro! Como sou burra! Que coisa maravilhosa: a Arquelândia jamais passará por outro perigo maior do que Rabadash. Não está orgulhoso?
— Acho que estou meio assustado — respondeu Cor.
— E agora você vai viver em Anvar — disse Aravis, um tanto ansiosa.
— Ó, até me esqueci da minha missão: papai quer que você venha viver conosco. Disse que não há mais uma só dama na corte (eles chamam de corte, sei lá por quê!) desde que mamãe morreu. Venha, Aravis. Você vai gostar de papai e de Corin. Ele não se parece comigo: foi bem educado. Não precisa ter medo...
— Pare com isso ou vamos mesmo brigar — replicou Aravis. — É claro que irei.
O encontro de Bri e Cor foi dos mais alegres. E Bri, que ainda estava numa disposição de espírito bem submissa, concordou que partissem imediatamente para Anvar: ele e Huin atravessariam a fronteira de Nárnia no dia seguinte. Despediram-se afetuosamente do eremita e partiram.
Os cavalos esperavam que Aravis e Cor fossem montados, mas o príncipe explicou que, a não ser em guerra, quando cada um deve fazer o que souber de melhor, ninguém em Nárnia ou na Arquelândia teria a menor ideia de montar num cavalo falante.
A observação fez o coitado do Bri relembrar mais uma vez a sua vasta ignorância sobre os costumes de Nárnia, e a sua grande possibilidade de futuros equívocos. Assim, enquanto Huin se deixava embalar em sonhos, Bri foi ficando mais nervoso e mais consciente de todos os seus passos.
— Coragem, Bri! — disse Cor. — É ainda muito pior para mim do que para você; você não tem de ser educado. Tenho de aprender a ler e escrever, heráldica, dança, história, música... enquanto você vai correr e rolar pelas colinas de Nárnia na maior felicidade.
— Mas aí é que está — replicou Bri. — Cavalos falantes rolam na relva? E se não rolarem? Nem posso pensar uma coisa dessas. Você, o que acha, Huin?
— Eu, por mim, vou rolar de qualquer maneira. E acho que ninguém vai dar a mínima pra isso.
— Estamos perto do castelo? — perguntou Bri a Cor.
— Depois da primeira curva.
— Bem, vou dar uma boa rolada agora. Pode ser a última. Um minutinho só.
Levou cinco minutos. Ergueu-se bufando, coberto de talos de avenca.
— Estou pronto — disse com a voz sombria. — Vá em frente, príncipe Cor. Para Nárnia! Para o Norte!
Parecia mais um cavalo a seguir um enterro do que um cativo voltando à liberdade depois de muito tempo.

Livro 3 O cavalo e seu menino Capítulo 13 - A batalha em Anvar

Lá pelas onze horas todo o exército estava em pé de guerra, marchando para oeste, com as montanhas à esquerda. Corin e Shasta iam na retaguarda, logo depois dos gigantes. Lúcia, Edmundo e Peridan estavam entretidos com os planos da batalha. Assim, quando Lúcia perguntou: “Mas onde está aquele principezinho levado da breca?”, Edmundo simplesmente respondeu: “Na vanguarda é que não está, e isso já é uma boa notícia. Deixe pra lá”.
Shasta contou a Corin suas aventuras, explicando que aprendera a montar com um cavalo e que não sabia usar o freio. Corin deu-lhe instruções, relatando ainda tudo sobre a viagem por mar, quando fugiram de Tashbaan.
— Por onde anda a rainha Susana?
— Em Cair Paravel. Ela não é como Lúcia, que briga feito um homem, ou pelo menos como um rapazinho. A rainha Susana parece mais uma dama. Não frequenta guerras, apesar de ser muito boa no arco e flecha.
Com o caminho ficando mais estreito e escarpado, passaram a desfilar em fila indiana ao longo da borda do precipício. Shasta estremeceu ao pensar que passara pelo mesmo lugar na noite anterior, e viu que não correra perigo porque o Leão permanecera a seu lado.
Duas águias giravam lá em cima no azul.
— Sentem o cheiro da batalha — disse Corin. — Sabem que estamos preparando comida para elas.
Shasta não gostou.
Ao atingirem o fim do desfiladeiro, o panorama abriu-se um pouco mais e Shasta pôde descortinar toda a Arquelândia, nevoenta e azul.
O exército fez alto e abriu-se em linha, executando novos arranjos de formação. Só então Shasta se deu conta do impressionante destacamento de feras falantes (leopardos, panteras, etc.) que foram postar-se à esquerda. Os gigantes foram enviados para a direita, mas, antes de assumirem suas posições, sentaram-se para calçar as enormes botas com ponteiras que vinham carregando nas costas e que lhes chegavam aos joelhos. Puseram então seus pesados cajados nos ombros e formaram para o combate. Os arqueiros, com a rainha Lúcia, caíram para a esquerda, e Shasta os viu –tiiim... tiiim... – experimentar as cordas dos arcos.
Por toda a parte era a mesma coisa: gente colocando elmos, puxando espadas, cingindo cintos, quase sem dizer palavra. Era tudo muito solene e dava medo.
“Agora não tenho saída”, pensou Shasta, “agora estou aqui.”
De longe chegava o som de gritos e um surdo tontom.
— Golpes de aríete — murmurou Corin. — Estão forçando as portas. — E acrescentou, com uma expressão agora muito séria: — Por que o rei Edmundo não parte para cima deles? Não aguento essa demora. É de morte!
Shasta concordou com a cabeça, esperando não aparentar todo o medo que sentia.
Por fim, a trompa! O pavilhão desfraldou-se no vento, com o trote dos cavalos. Todo o cenário abriu-se de repente: um pequeno castelo de muitos torreões, com o portão à frente deles. Não tinha fosso, infelizmente. Sobre as muralhas viam-se os defensores.
Embaixo, cerca de cinquenta calormanos, desmontados, forçavam os portões com um vasto tronco de árvore. Mas bem depressa a cena mudou. O grosso dos homens de Rabadash estava a pé, pronto para invadir os portões. E tinham acabado de perceber os narnianos que desciam da serra.
Sem dúvida alguma, os calormanos eram muito bem exercitados. Em um segundo, toda uma linha do inimigo estava novamente a cavalo, rodopiando para enfrentá-los, saltando de encontro a eles.
E um galope agora. O espaço entre os dois exércitos diminuía de momento a momento. Rápido, mais rápido. Espadas nuas, escudos à altura do nariz, orações feitas, dentes cerrados.
Shasta estava morrendo de medo. Mas de repente pensou que ter medo naquele momento era sentir medo em todas as outras lutas de sua vida. “Agora ou nunca!”
Quando as duas formações se encontraram ele teve uma ideia muito pálida do que estava acontecendo. Foi uma confusão assustadora, um estrépito de enlouquecer. A espada não demorou a ser derrubada de suas mãos. Embaraçaram-se suas rédeas, e viu-se escorregando do cavalo. Aí uma lança veio na sua direção e, enquanto ele se agachava para evitá-la...
Mas de nada vale descrever o combate do ponto de vista de Shasta, que pouco entendia da luta em geral e mesmo da sua pequena guerra particular. Para contar o que realmente acontecia, levarei você para bem longe dali, para onde o eremita se postava a olhar para a água do tanque, sob a árvore frondosa, com Bri, Huin e Aravis a seu lado.
Pois era para dentro desse tanque que o eremita olhava quando queria saber o que se passava no mundo, além dos muros verdes do eremitério. Como num espelho, conseguia ver no tanque cidades mais longínquas que Tashbaan, navios que deixavam os portos e até assaltantes e feras que perambulavam pelas grandes florestas entre o Ermo do Lampião e Teimar. Naquele dia pouco deixou o tanque, nem mesmo para comer ou matar a sede, pois sabia que grandes eventos estavam acontecendo em Arquelândia. Aravis e os cavalos também olhavam para o interior do poço. Em vez do céu e dos ramos refletidos, viam confusas formas coloridas que se moviam. Mas não viam com nitidez. Era o eremita que lhes dizia de vez em quando o que ia vendo claramente. Um pouco antes de Shasta ter seguido para a sua primeira batalha, ele começou a falar assim:
— Estou vendo uma... duas... três águias girando acima do Pico da Tempestade. Uma é a mais velha de todas as águias. Não estaria lá se uma batalha não estivesse para explodir. Ah... Agora vejo o motivo pelo qual Rabadash e seus homens andaram tão ocupados o dia todo. Derrubaram uma grande árvore e fizeram do tronco um aríete. Aprenderam alguma coisa com o fracasso do assalto da noite passada. Procederia ele com mais inteligência se mandasse os homens fazerem escadas. Mas levaria mais tempo, e ele é impaciente. Tresloucado! Ele deveria ter retornado para Tashbaan logo depois de fracassado o primeiro ataque, pois todo o seu plano dependia da surpresa e da rapidez.
“Estão colocando o aríete em posição. Os homens do rei Luna atiram de cima das muralhas. Caíram cinco calormanos; mas muitos restarão, mantendo os escudos acima das cabeças. Rabadash agora está transmitindo novas ordens. Estão com ele os senhores de mais confiança, os cruéis tarcaãs das províncias do Oriente. Vejo até os seus rostos. Ali vai Coradin do Castelo de Tormunt, e Chlamash, e Ilgamute, o do lábio torcido, e um alto tarcaã com uma barba escarlate...
— Pela juba! É o meu antigo amo Anradin! — exclamou Bri.
— Psiu! — disse Aravis.
— O aríete agora começa a funcionar. São terríveis pancadas, mas não posso ouvi-las. Não há porta ou portão que aguente. Um momento! Alguma coisa no Pico da Tempestade assustou as aves. Estão vindo em massa. Um momento! Ainda não posso ver... Ah! Já vejo. A encosta leste está negra de cavaleiros. Já vi o pavilhão. Nárnia! Nárnia! É o Leão vermelho! Desabalaram serra abaixo. Estou vendo o rei Edmundo. Há uma dama entre os arqueiros. Ó!
— Que foi? — perguntou Huin, ofegante.
— Todos os gatos se lançam pela esquerda da linha.
— Gatos? — estranhou Aravis.
— Gatões, bichos como leopardos — explicou o eremita, com impaciência. — Estou entendendo: os gatos estão cercando os cavalos dos homens desmontados. Os cavalos dos calormanos já estão loucos de pavor. Os gatos já estão entre eles. Rabadash refez o seu exército e conta com cem homens a cavalo. Vão bater-se com os narnianos. Cem metros os separam. Cinquenta. Estou vendo o rei Edmundo e lorde Peridan. Há duas crianças na linha de Nárnia. Como o rei foi deixar que entrassem na batalha? Só dez metros... as duas frentes se encontraram. Os gigantes à direita de Nárnia estão operando prodígios... mas um acabou de cair... ferido no olho, suponho. A confusão é geral. De novo os dois meninos. Pelo Leão! Um deles é Corin! O outro é parecidíssimo com ele. Ah, é o pequeno Shasta, Corin luta feito um homem. Matou um calormano. Quase que Rabadash e Edmundo se encontram...
— É Shasta? — perguntou Aravis.
— Ó! Que maluco! — resmungou o eremita. — Que rapazinho maluco e valente! Não sabe nada de guerra. Nem sabe usar o escudo. Está completamente exposto. Não tem a menor ideia do que fazer com a sua espada. Ah, agora se lembrou... começou a rodar a espada... quase cortou a cabeça do seu cavalo, e acabará cortando se não tomar mais cuidado. Mas a espada caiu-lhe da mão. É um crime mandar uma criança para uma batalha; não dura mais do que cinco minutos. Que maluquinho... Ó, caiu!...
— Morto? — perguntaram os três.
— Como vou saber? Os gatos trabalharam bem. Todos os cavalos sem cavaleiros estão mortos ou fugiram. Não há muita possibilidade para os calormanos. Os gatos agora se dirigem para a zona mais quente da batalha. Estão saltando sobre os homens do aríete. Um caiu no chão. Ó, bom, muito bom! Os portões se abriram pelo lado de dentro; vão enfrentá-los peito a peito. O rei Luna está entre os primeiros que saem; os outros são os irmãos Dar e Darin. Chegam atrás Tran, Shar e Col com o seu irmão Colin. São dez... vinte... quase trinta agora. Os calormanos estão imprensados. O rei Edmundo está fazendo lances magníficos. Acabou de decepar com grande precisão a cabeça de Coradin. Muitos calormanos jogam suas armas no chão e correm para as matas. Os outros não correm porque estão encurralados.
“Os gigantes apertam pela direita... os gatos pela esquerda... o rei Luna pela retaguarda. Os calormanos se agrupam, lutando. Seu tarcaã já era, Bri. Luna e Ilgamute estão combatendo corpo a corpo. Parece que o rei vai ganhar... Ele está indo muito bem... O rei ganhou! Ilgamute no chão. O rei Edmundo caiu, não... não... levantou-se outra vez. Está frente a frente com Rabadash. Estão lutando bem na frente do portão do castelo. Vários calormanos se entregam. Não sei o que aconteceu a Rabadash. Acho que morreu, tombado sob o muro do castelo, mas não sei. Chlamash e o rei Edmundo continuam a lutar, mas a batalha já terminou por todos os lados. Chlamash se entrega. Acabou-se a luta! Os calormanos foram inexoravelmente batidos.
Ao cair do cavalo, Shasta se deu por perdido. Mas os cavalos, mesmo numa batalha, pisoteiam os seres humanos muito menos do que se pode supor. Depois de uns dez minutos, reparou que não havia cavalos revolteando por perto e que os ruídos que ouvia não eram de combate. Olhou em torno. Compreendeu que os arqueiros e os narnianos haviam vencido. Os únicos calormanos vivos ao alcance da vista estavam aprisionados, e os portões do castelo estavam abertos; o rei Luna e o rei Edmundo apertavam-se as mãos sobre o aríete. Os lordes e guerreiros conversavam animadamente.
E de repente tudo se uniu numa tremenda gargalhada.
Shasta correu para saber qual era o motivo de tanto riso. E deu com uma cena muito engraçada. O infeliz Rabadash estava suspenso no ar, em algum ponto da muralha do castelo. Seus pés, meio metro acima do solo, davam chutes violentos. Sua malha de ferro estava presa a uma saliência qualquer, apertando-lhe as axilas e cobrindo metade do seu rosto. Um homem surpreendido no momento de vestir uma camisa apertada demais – era esta a imagem de Rabadash.
Acontecera mais ou menos o seguinte: logo no início da batalha, um dos gigantes procurou acertar Rabadash com a sua bota pontuda; não conseguiu, mas o ferrão rasgou a malha. Ao encontrar-se com Edmundo às portas do castelo, Rabadash tinha um rasgão nas costas de sua malha. Acuado por Edmundo de encontro à muralha, pulou para um lugar mais elevado, tentando defender-se de cima. Desconfiando que a sua posição, acima da cabeça de todos, o tornava um alvo fácil para as flechas narnianas, resolveu voltar para o nível do chão. Grandioso e assustador, deu um pulo e um grito: “O raio de Tash cai do alto!” Mas pulou um pouco para o lado, pois na frente estava um monte de guerreiros. Foi aí, com uma precisão admirável, que o rasgão em sua malha foi pescado por um gancho preso na pedra do muro. (Antigamente esse gancho prendia um aro que servia para amarrar as rédeas dos cavalos.) E lá ficou ele, como uma peça de roupa posta a secar, e todo o mundo dando gargalhadas.
— Deixe-me descer daqui, Edmundo — rosnou Rabadash. — Desça-me e vamos lutar como reis e machos; mas, se for covarde demais para isso, mate-me de uma vez.
— Com o maior prazer... — disse Edmundo, que foi interrompido pelo rei Luna:
— Nada disso, Majestade. — E o rei Luna dirigiu-se a Rabadash:
— Se Vossa Alteza tivesse feito esse desafio há uma semana, não haveria ninguém nos domínios do rei Edmundo, do Grande Rei ao menor dos camundongos falantes, que o teria recusado. Mas, por ter atacado o castelo de Anvar em tempo de paz e sem declaração de guerra, mostrou que não é um cavalheiro, e sim um traidor, mais digno do relho do carrasco do que de uma luta singular com uma pessoa honrada. Tirem-no daí; levem-no amarrado para o castelo, até que a nossa satisfação se torne conhecida de todos.
Mãos fortes arrancaram a espada de Rabadash, que foi arrastado para o castelo entre gritos, ameaças e maldições, e até lágrimas. Pois, embora capaz de enfrentar a tortura, não suportava passar por ridículo. Sempre fora levado a sério em Tashbaan.
Nesse instante Corin foi correndo até Shasta, pegou-lhe a mão e puxou o amigo para perto do rei Luna.
— Aqui está ele, pai, aqui está ele — gritou Corin.
— E também aqui está você, finalmente — disse o rei com uma voz muito ríspida. — Entrou na batalha contrariando ordens! Um filho mata um pai! Na sua idade, uma varada no traseiro vai melhor do que uma espada na mão, hã!
Todos notaram, no entanto, que o rei se sentia orgulhoso do filho.
— Não se zangue mais com ele, Majestade, por favor — disse Darin. — Sua Alteza não seria filho de quem é se não tivesse herdado a sua bravura. Mais afligiria Sua Majestade se ele fosse digno de reprimenda pela falta contrária.
— Bem, bem — resmungou o rei. — Desta vez, passaremos por cima, mas da próxima... E agora...
O que aconteceu em seguida foi a maior surpresa que Shasta já teve em toda a sua vida: de repente se viu apertado nos braços de urso do rei Luna, que o beijava nas duas bochechas. E, quando ele se encontrou de novo no chão, o rei falou:
— Fiquem aqui juntos, rapazes, para que todos possam vê-los. Levantem a cabeça! Senhores, olhem para ambos. Alguém pode ter alguma dúvida?
Shasta ainda não podia entender por que motivo todos fixavam os olhos nele e em Corin, nem por que tanta alegria.