sexta-feira, 23 de maio de 2014

Livro 3 O cavalo e seu menino Capítulo 2 - Uma aventura na noite

Era quase meio-dia quando Shasta acordou, na manhã seguinte, com uma coisa cálida e macia mexendo no seu rosto. Ao abrir os olhos deu com a cara comprida de um cavalo. Lembrou-se dos acontecimentos emocionantes da véspera e sentou-se. Sentou-se e gemeu.
— Ai! Bri, estou todo dolorido. Nem dá para mexer o corpo.
— Bom dia, baixinho. Achei mesmo que você podia estar meio emperrado. Não pode ser dos tombos: caiu somente umas dez vezes, e muito bem, em cima de relvas tão macias que até dava gosto. Você está sentindo é a própria cavalgada. Que tal se comesse alguma coisa? Por mim, já estou satisfeito.
— Comer coisa nenhuma, deixe isso pra lá, deixe tudo pra lá. Mal posso me mexer!
Mas o cavalo continuou a cutucá-lo bem de leve com o focinho e o casco; o jeito foi levantar-se. Shasta olhou em volta: atrás deles havia um pequeno bosque; à frente, a relva pintada de flores alvas descia até a beira de um penhasco. Lá de baixo, bem longe, chegava amortecido o barulho das ondas.
Shasta nunca tinha visto o mar de tão alto e nem havia imaginado que ele pudesse ter tantas cores. A costa estendia-se de cada lado, um cabo depois do outro, e nas pontas via-se a espumarada explodir contra os rochedos, sem barulho, por causa da distância.
Gaivotas revoavam. O dia era ardente. Mas a maior diferença para Shasta estava no ar. Faltava qualquer coisa no ar. Acabou descobrindo o que era: faltava cheiro de peixe. Esse ar novo era tão delicioso, que fez de repente com que toda a sua vida passada ficasse distante. Chegou a esquecer por um momento os machucados e os músculos doloridos.
— Bri, você falou algo sobre comida?
— Falei. Deve haver alguma coisa nas sacolas que você pendurou naquela árvore, quando chegamos.
Examinaram as sacolas e o resultado foi animador: um pastel de carne, só que um pouquinho rançoso, figos secos, um pedaço de queijo, um frasco de vinho, e dinheiro – quarenta crescentes ao todo, mais do que Shasta já havia visto a vida inteira.
Enquanto o menino sentou-se com todo o cuidado, recostando-se numa árvore para comer o pastel, Bri deu algumas bocanhadas na relva, só para fazer-lhe companhia.
— Não será roubo gastar esse dinheiro? — perguntou Shasta.
— É verdade — respondeu o cavalo, com a boca cheia de capim. — Nem pensei nisso. Um cavalo livre, um cavalo falante, não rouba... Mas não vejo mal algum, francamente. Éramos prisioneiros num país inimigo. O dinheiro é a nossa presa de guerra. Além disso, de que jeito vamos arranjar comida sem dinheiro? Você é humano e não vai querer comida natural, como capim e aveia, não é?
— Capim e aveia não dá pé, Bri.
— Já experimentou?
— Já. Não desce, de jeito nenhum.
— São tão esquisitões os humanos!
Quando Shasta terminou a refeição (a melhor que já tivera), Bri disse que iria dar uma boa rolada na relva. E assim o fez, colocando-se de pernas para o ar:
— É uma delícia, uma delícia! Devia fazer o mesmo, Shasta. Refresca que é uma beleza.
Shasta caiu na risada, dizendo:
— Você fica tão engraçado de pernas para o ar!
— Engraçado coisa nenhuma — protestou Bri. E levantou-se de repente, erguendo a cabeça e fungando um pouco. — É mesmo engraçado, Shasta?
— Muito. Isso tem alguma importância?
— Você acha que um cavalo falante faz isso? Será que aprendi isso com os cavalos mudos? Vai ser muito desagradável se descobrirem em Nárnia que adquiri maus hábitos. Que acha? Pode falar com toda a franqueza. Acha que os verdadeiros cavalos, os falantes, rolam na relva?
— Como é que posso saber? Eu é que não ia ligar para isso, se fosse você. Temos primeiro é de chegar lá. Sabe o caminho?
— Sei o caminho para Tashbaan. Depois é o deserto. Mas não se assuste, a gente dá um jeito no deserto. Lá teremos a visão das montanhas do Norte. Ninguém nos segura. Imagine só! Para Nárnia e para o Norte! Mas bem que gostaria de já ter passado por Tashbaan. Nosso problema são as cidades.
— Podemos evitar Tashbaan?
— Só se percorrêssemos um longo caminho por dentro, que passa por terras cultivadas e boas estradas, mas não sei o caminho. Não, devemos ir ao longo da costa. Aqui em cima só encontraremos carneiros, coelhos, gaivotas e alguns pastores. Aliás, que tal se a gente fosse indo?
As pernas de Shasta doíam muito, mas colocou os arreios e montou.
Bondosamente, Bri marchou com delicadeza a tarde inteira. Quando baixou o crepúsculo, chegaram por veredas íngremes a um vale onde havia um vilarejo. Shasta apeou e entrou na vila para comprar pão, cebola e rabanete. O cavalo deu a volta pelo campo, indo encontrar o menino do outro lado. Passaram a proceder desse modo, uma noite sim, outra não.
Eram grandes dias para Shasta, hoje melhor do que ontem, à medida que seus músculos se enrijeciam e as quedas eram menos frequentes. Mesmo assim, Bri costumava falar que ele parecia um saco de farinha em cima da sela. E ainda dizia:
— Mesmo que não tivesse perigo algum, confesso que teria vergonha de ser visto com você.
Apesar das palavras duras, Bri era um instrutor paciente. Ninguém ensina equitação melhor do que um cavalo. Shasta aprendeu a trotar, a galopar, a saltar e a manter-se na sela, mesmo quando Bri sofreava o passo subitamente ou negaceava para a esquerda ou para a direita; coisas, dizia, que são necessárias numa batalha.
Naturalmente, Shasta pedia-lhe que contasse as guerras de que havia participado com o tarcaã. Bri falava de marchas forçadas, de caudalosos rios vadeados, de embates de cavalarias inimigas, quando os cavalos guerreiam tanto quanto os homens, sendo todos eles impetuosos garanhões, treinados para morder e escoicear. Mas nem sempre queria falar de guerra.
— Não toque neste assunto, rapaz. Eram guerras do Tisroc e nelas entrei como escravo, como um cavalo mudo. Espere para me ver nas guerras de Nárnia, onde combaterei como um cavalo livre entre o meu próprio povo! Aí, sim, teremos guerras que merecem ser contadas. Para Nárnia! Para o Norte! Brá-rá-rá! Bru-ru!
Shasta logo aprendeu a preparar-se para um galope quando ouvia Bri bradar desse jeito.
Depois de viajar semanas e semanas, passando por baías e enseadas, rios e vilas, numa noite de luar cruzaram uma planície com uma floresta à esquerda. O mar, oculto por dunas, ficava à direita, à mesma distância. De repente Bri estacou.
— Algum problema?
— Psiu! — respondeu Bri, esticando o pescoço e contraindo as orelhas. — Está ouvindo? Preste atenção.
— Parece barulho de outro cavalo, correndo entre nós e a mata.
— É outro cavalo. E isso não me agrada.
— Quem sabe é um fazendeiro chegando mais tarde?
— Qual nada! Não é um fazendeiro. Nem é cavalo de fazendeiro. Não percebe pelo som? Tem classe. E está sendo montado por alguém que sabe mesmo montar. Vou lhe dizer o que é, Shasta: há um tarcaã na orla da mata. Não está montado em seu cavalo de guerra... é muito ligeiro para isso. É uma égua de raça, é o que lhe digo.
— Agora parou, seja lá o que for.
— Certo, Shasta. E por que ele para quando paramos? Meu amigo, alguém está nos seguindo, tenho certeza.
— Que vamos fazer? — perguntou Shasta num sussurro. — Acha que ele está vendo e ouvindo a gente?
— Vamos ficar quietos. Há uma nuvem que se aproxima; vamos esperar que a lua fique encoberta. Depois ganharemos a praia no maior silêncio. Na pior das hipóteses, poderemos esconder-nos atrás das dunas.
Quando a nuvem ocultou a lua, saíram, primeiro a passo e depois num trote manso. A nuvem era maior do que parecia, e a noite ficou bem escura. Quando Shasta julgou que já estavam perto das dunas, um longo rugido se fez ouvir na escuridão à frente, um rugido melancólico e selvagem, que quase fez o coração do menino sair-lhe pela boca.
Na mesma hora Bri voltou a galopar para o lado da terra.
— Que é isso?
— Leões! — respondeu Bri, sem mudar a passada ou virar a cabeça.
Depois de um estirão, chapinharam dentro de um riacho raso e Bri deu uma parada. Suava e tremia.
— A água deve ter confundido o faro da fera — Bri suspirou ao recuperar um pouco o fôlego. — Podemos ir andando. Shasta, estou com vergonha de mim. Estou tão apavorado quanto um cavalo comum dos calormanos. Verdade mesmo. Não me sinto um cavalo falante. Não dou a menor importância para flechas e lanças, mas não suporto... aquelas criaturas. Acho que vou dar mais um trote.
Um minuto mais tarde galopava novamente, pois o rugido reaparecera, desta vez à esquerda, vindo da mata.
— São dois! — gemeu Bri.
Depois de galoparem alguns minutos sem que houvesse outros rugidos, Shasta falou:
— Aquele outro cavalo está galopando perto de nós.
— M... melhor — arquejou Bri. — Tarcaã nele... espada... pro... protege a gente.
— Mas Bri! A gente vai morrer também, se nos pegarem. Eu, pelo menos. Vão me enforcar como ladrão de cavalo.
Sentia menos medo de leão do que Bri, pois nunca havia encontrado um.
Bri apenas fungou, encostando-se mais para a direita. Estranhamente, o outro cavalo pareceu encostar para a esquerda; e assim, em poucos segundos, o espaço entre os dois tinha ficado bem maior. Foi quando ouviram mais dois rugidos de leão, um à direita, outro à esquerda. Os cavalos reaproximaram-se. Os rugidos eram terrivelmente próximos, e as feras pareciam acompanhar perfeitamente o galope dos cavalos.
A nuvem descobriu a lua e tudo se iluminou como se fosse dia claro. Os dois cavalos e os dois cavaleiros corriam quase de cabeças coladas, como se estivessem disputando uma corrida. Aliás (como disse Bri mais tarde), nunca se viu na Calormânia uma corrida tão sensacional.
Shasta já se dava por perdido e começava a pensar se os leões matam de uma vez ou se brincam com a vítima como faz o gato com o rato. Dói muito? Ao mesmo tempo (isso às vezes acontece nos piores momentos) observava tudo. Notou que o outro cavaleiro era uma pessoa pequena e delgada, vestindo uma cota de malha, na qual se refletia o luar. Montava maravilhosamente bem e não tinha barba.
Alguma coisa lisa e brilhante estendia-se diante deles. Antes que Shasta tivesse tempo de pensar, sua boca estava cheia de água salgada. A coisa brilhante era um comprido braço de mar. Ambos os cavalos nadavam, e Shasta sentia a água nos joelhos.
Ao ouvir um rugido enraivecido, olhou para trás, e percebeu uma enorme figura peluda agachada à beira d’água – só uma. Achou que o outro leão desaparecera.
O leão parecia achar que as presas não valiam um banho: não fez a menor tentativa de continuar a perseguição. Os dois cavalos, lado a lado, estavam agora no meio do braço de mar, e a praia oposta podia ser vista com nitidez. O tarcaã nada dissera ainda. Shasta imaginava o que iria falar quando chegassem do outro lado. Precisava inventar uma história. De repente, duas vozes falaram a seu lado.
— Que cansaço! — disse uma voz.
— Bico calado, Huin! — disse a outra.
“Estou sonhando”, pensou Shasta. “Sou capaz de jurar que aquele cavalo falou.”
Daí a pouco os cavalos já andavam em terra sobre seixos, a água escorrendo de seus corpos. O tarcaã, para espanto de Shasta, não mostrou o menor desejo de fazer perguntas. Nem mesmo olhou para ele; só manifestava a firme intenção de manter o cavalo em frente. Bri, no entanto, chegou para perto do outro animal, dizendo:
— Bru-ru-rá! Pare aí. Não adianta fingir, madame. Ouvi você falar. É uma égua falante, uma égua de Nárnia.
— Que tem você com isso, se ela é de Nárnia? — disse o estranho cavaleiro com ferocidade, agarrando-se ao punho da espada. Mas a voz revelou a Shasta uma novidade.
— Ora, vejam! É uma menina, só uma menina!
— E o que tem você com isso, se sou só uma menina? Você é só um menino: um meninozinho mal-educado... Na certa um escravo que roubou o cavalo do dono.
— Tem certeza? — disse Shasta.
— Não se trata de um ladrão, tarcaína — disse Bri. — Se houve roubo, quem roubou o menino fui eu. Quanto a não ter nada com isso, não deveria esperar que eu cruzasse por uma dama de minha própria pátria, em país estrangeiro, sem lhe dirigir a palavra. Nada mais natural, creio.
— Também acho isso muito natural — disse a égua.
— Acho que você deve é ficar calada, Huin — disse a menina. — Veja só que trapalhada já arranjou!
— Não sei de nenhuma trapalhada — disse Shasta. — Pode sumir a hora que quiser. Não vamos segurar ninguém.
— Claro que não.
— Como brigam esses humanos! — falou Bri para Huin. — São teimosos como uns burros. Vamos ver se nós dois podemos conversar direito. Será a sua história igual à minha? Apanhada na juventude... anos de escravidão entre os calormanos?
— É verdade — respondeu a égua com um relincho.
— E talvez agora... a fuga?
— Diga a esse sujeito, Huin, para não meter o nariz onde não é chamado — disse a menina.
— Eu não, Aravis — falou a égua, botando as orelhas para trás. — Esta fuga é minha também, não apenas sua. Além disso, tenho absoluta certeza de que um nobre guerreiro, como este cavalo, será incapaz de trair-nos. Estamos tentando fugir para Nárnia.
— Nós também — respondeu Bri. — Já devia ter imaginado isso. Um menino em farrapos, montando – ou tentando montar – um cavalo de guerra na calada da noite, só poderia ser uma fuga. E uma tarcaína de alta linhagem, metida na armadura do irmão e louca para que ninguém se meta com ela, se isso não é meio suspeito podem me chamar de cavalo de circo.
— Pois, então, muito bem! — disse Aravis. — Adivinhou! Estamos fugindo. Estamos tentando chegar a Nárnia. E daí?
— Bem, nesse caso, o que nos impede de ir juntos? — disse Bri. — Estou certo, madame Huin, de que aceita a proteção que poderei oferecer-lhe durante a jornada...
— Quer parar de falar com a minha montaria e dirigir-se a mim? — protestou a menina.
— Queira desculpar, tarcaína — respondeu Bri, com um ligeiríssimo tremor de orelha — mas isso é conversa de calormanos. Somos narnianos livres, Huin e eu; e acho que, se você está fugindo para Nárnia, também desejará o mesmo. Neste caso, Huin não é mais a sua montaria. Podemos até dizer que você é a humana de Huin.
A menina abriu a boca para responder, mas desistiu. Evidentemente ainda não tinha visto a coisa sob esse aspecto.
— De qualquer modo — falou, depois de uma pausa — não vejo muita vantagem em irmos juntos. Será que assim não chamaremos mais a atenção?
— Menos — respondeu Bri.
— Ora, vamos juntos — disse a égua. — Vou-me sentir muito melhor. E, além disso, nem sequer estamos certas do caminho a seguir.
— Bri — interveio Shasta — é melhor deixá-las. Está se vendo que não desejam a nossa companhia.
— Pelo contrário — disse Huin.
— Escute aqui — disse a menina. — Não me importo de ir com você, Sr. Cavalo de Guerra... Mas, e o menino? Como vou saber se ele é ou não é um espião?
— Por que não diz logo que não sou digno da sua companhia? — perguntou Shasta.
— Calma, Shasta — disse Bri. — A dúvida da tarcaína é muito razoável. Respondo pelo menino, tarcaína. Tem sido fiel e amigo. Só pode ser de Nárnia ou da Arquelândia.
— Bem, vamos juntos. — Mas Aravis nada disse para Shasta; era óbvio que desejava somente a companhia de Bri.
— Magnífico! — exclamou Bri. — Agora, que a água nos defende daqueles pavorosos bichos, que tal se os dois humanos tirassem as nossas selas para um bom descanso? Precisamos conversar sobre as nossas histórias.
Livres das selas, os cavalos comeram um pouco de capim, enquanto Aravis retirava do seu alforje maravilhosas coisas de comer. Mas Shasta, amuado, recusou: “Não, obrigado, não estou com fome.” Tentou manter uma pose importante e indiferente, mas choupana de pescador não é lugar muito adequado para uma criança aprender a fazer pose: o resultado foi um fiasco.
Quando percebeu que a sua encenação não estava fazendo o menor sucesso, ficou ainda mais amuado e sem jeito. Os cavalos, pelo contrário, estavam se dando às mil maravilhas. Relembravam os mesmos lugares de Nárnia — “os relvados do Dique dos Castores”— e acabaram descobrindo que eram meio aparentados. Isso agravou ainda mais a situação dos humanos, até que Bri acabou dizendo:
— Agora, tarcaína, conte-nos a sua história. E não tenha pressa... Estou me sentindo tão bem...
Aravis não fez cerimônia. Sentou-se quase imóvel e começou a falar, num tom de voz e num linguajar bem diferentes. Pois acontece o seguinte: na Calormânia,aprende-se a contar uma história (seja ela verdadeira ou inventada), assim como você aprende na escola a fazer redações. A diferença é que as pessoas gostam de ouvir histórias, mas nunca soube de alguém que gostasse de redações.

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