sexta-feira, 23 de maio de 2014

Livro 3 O cavalo e seu menino Capítulo 8 - Na casa do Tisroc

O jovem tomou a palavra:
— Pai-meu-e-deleite-dos-meus-olhos! — falava depressa e num tom emburrado sem convencer a ninguém que o Tisroc fosse o deleite de seus olhos. — Louvado seja o seu nome para sempre! O senhor me destruiu completamente. Se tivesse me dado a mais rápida de suas galeras ao nascer do sol, quando percebi que o navio dos malditos bárbaros se afastava, talvez eu os tivesse alcançado. Persuadiu-me porém o senhor a verificar se acaso não estariam eles buscando melhor ancoradouro. Perdemos todo o dia. E já se foram... já se puseram fora do meu alcance! Aquela falsa joia, aquela...
E aqui o jovem começou a referir-se à rainha Susana com palavras que não fica bem registrar no papel. Pois, sem dúvida, tratava-se do príncipe Rabadash; a falsa joia só podia ser Susana de Nárnia.
— Olha a compostura, filho meu — disse o Tisroc. — A partida de um hóspede faz uma ferida que se cura mais depressa no coração do sensato.
— Mas eu quero a moça — bradou o príncipe. — Eu preciso da moça! Vou morrer sem... sem aquela falsa, soberba, aquela traiçoeira filha de um cão sarnento! Já não posso mais dormir, o melhor alimento não me apetece, os meus olhos estão ofuscados pela beleza daquela bárbara. Preciso da rainha bárbara.
— Como disse tão bem o divino poeta — observou o vizir, erguendo o rosto um tanto empoeirado — “uns bons goles na fonte da razão ajudam a apagar o fogo do coração”.
Esse verso irritou ainda mais o príncipe.
— Seu cachorro! — gritou ele, aplicando chutes certeiros no traseiro do grão-vizir. — Não ouse levantar poetas contra mim. Estou cheio de versos e máximas!
É possível que Aravis não tenha sentido a menor pena do vizir.
O Tisroc parecia mergulhado em devaneios, mas, ao notar o que acontecia, falou tranquilamente:
— Filho meu, pare de dar pontapés no venerável e esclarecido vizir, pois, assim como uma gema conserva o seu valor mesmo num monte de estéreo, deve a velhice ser respeitada, mesmo na mais vil das pessoas. Pare, pois, e diga-nos o que deseja e propõe.
— Desejo e proponho, pai meu, que o senhor convoque imediatamente seu invencível exército a fim de invadir a três vezes maldita terra de Nárnia, para arrasá-la com a espada e o fogo, anexando-a ao nosso ilimitado império, matando o Grande Rei e todos os de seu sangue, com exceção da rainha Susana. Pois a esta eu quero por mulher, quando ela tiver aprendido sua lição.
— Compreenda, filho meu, que nenhuma das palavras que proferisse poderá levar-me a uma guerra aberta com Nárnia.
— Não fosse o senhor o meu pai, ó venerado Tisroc — disse o príncipe rangendo os dentes — diria que são palavras de um covarde.
— E não fosse você meu filho, ó fogoso Rabadash, sua vida agora seria curta e demorado o seu fim.
A voz plácida e fria com que disse essas palavras gelou o sangue de Aravis.
— Mas, pai meu — replicou o príncipe, num tom bem mais respeitoso — por que pensar duas vezes em punir Nárnia? É como se enforcássemos um escravo preguiçoso ou déssemos um cavalo velho para os cachorros comerem. Nárnia não chega a ser a quarta parte da menor de suas províncias. Mil lanças podem subjugá-la em cinco semanas. Não passa de uma nódoa aos pés do seu império.
— Sem dúvida — falou Tisroc. — Esses pequenos países bárbaros que se proclamam livres (vale dizer, indolentes, caóticos, inúteis) são odiosos aos deuses e a todas as pessoas de discernimento.
— Assim sendo, por que haveremos de sofrer a afronta de uma Nárnia insubmissa? — prosseguiu o príncipe.
— Saiba, ó sábio príncipe — interveio o grão-vizir — que, até o ano em que o seu altivo pai começou o seu salutar e eterno reinado, a terra de Nárnia vivia coberta de neve e gelo e era governada por uma poderosa feiticeira.
— Sei de tudo isso muito bem, ó loquaz vizir — replicou o príncipe. — Mas também sei que a feiticeira morreu. E que o gelo e a neve derreteram. E que Nárnia agora é um país frutífero.
— E essa mudança, cultíssimo príncipe, sem sombra de dúvida, é devida aos encantamentos dessas criaturas perversas que agora se intitulam reis e rainhas de Nárnia.
— Sou de opinião — disse Rabadash — que isso aconteceu pela força das causas naturais.
— Isto é assunto para os sábios. — falou o Tisroc. — Jamais poderei acreditar que uma tal mudança possa ser feita sem a intervenção de poderosa magia. Tantas coisas ali sucedem, que a terra é principalmente habitada por demônios na forma de bichos que falam como homens e de monstros que são metade homem e metade animal. É geralmente aceito que o Grande Rei de Nárnia, que os deuses o amaldiçoem!, é sustentado por um demônio de aspecto hediondo e de imbatível poder maléfico, que aparece sob a forma de um leão. Daí ser o ataque a Nárnia uma empresa duvidosa. Estou decidido a não meter a mão em saco de onde não possa retirá-la.
— Venturosos os calormanos — disse o vizir, revirando mais uma vez a cabeça — em cujo chefe os deuses houveram por bem derramar a prudência e a circunspecção! Como diz o sábio e irrefutável Tisroc, seria penoso meter as mãos em um saco tão opulento quanto Nárnia. Divino foi o poeta que disse...
A esta altura Achosta percebeu um movimento impaciente do pé do príncipe e calou-se.
— É muito penoso — concordou o Tisroc na sua voz profunda e mansa. — O sol é escuro aos meus olhos, e à noite meu sono é menos reparador, por lembrar-me que Nárnia é ainda uma terra livre.
— Pai meu — disse Rabadash — e se lhe mostrasse uma maneira pela qual poderia estender a sua mão para agarrar Nárnia, podendo retirá-la incólume, caso fracassasse a tentativa?
— Caso me mostre isso, Rabadash, será o melhor dos filhos.
— Escute, pois, meu pai. Nesta mesma noite, conduzirei apenas duzentos cavalos e homens pelo deserto. Parecerá a todos que o senhor nada sabe de minha expedição. Na segunda manhã estarei nos portões do castelo do rei Luna, na Arquelândia, em Anvar. Estão em paz conosco e desprevenidos: tomarei Anvar antes que se mexam. Depois cavalgarei pelo desfiladeiro do alto de Anvar, seguindo por Nárnia até Cair Paravel. O Grande Rei não se encontra lá; quando o deixei, preparava uma expedição contra os gigantes da fronteira do norte. Entrarei facilmente em Cair Paravel. Serei cauteloso, cortês e mesureiro como um narniano. E depois, então? É esperar sentado até a chegada do Esplendor Hialino,com a rainha Susana a bordo, agarrar o meu passarinho fujão assim que ele pousar, colocá-lo na sela e cavalgar, cavalgar até Anvar.
— Mas não é provável, filho meu, que, ao arrebatar a mulher, um dos dois, você ou o rei Edmundo, perca a vida?
— São poucos: dez dos meus homens podem desarmá-lo e amarrá-lo. Sofrearei minha veemente sede de sangue para que não prevaleça um motivo de guerra entre o senhor e o Grande Rei.
— E se o Esplendor Hialino chegar a Cair Paravel antes de você?
— Não com estes ventos, pai meu.
— Por fim, imaginoso filho meu, está bem claro de que maneira obterá a mulher bárbara, mas de modo algum está claro como poderei subjugar Nárnia.
— Pai meu, por acaso lhe escapou que, enquanto eu e meus cavaleiros cruzamos Nárnia de lado a lado como uma flecha, Anvar já será nossa para sempre? De posse de Anvar, estamos sentados às portas de Nárnia, e sua guarnição aí pode ser acrescida pouco a pouco, até transformar-se em legião imensa.
— Falou com discernimento e espírito de previsão. Mas como vou retirar a minha mão se tudo for por água abaixo?
— É só dizer que fiz esse gesto sem o seu conhecimento, contra o seu coração, impelido pela violência do meu amor e pelo ardor da juventude.
— Certo. Mas se o rei pedir que lhe mandemos de volta a mulher bárbara, irmã dele?
— Pai meu, pode estar certo de que isso não acontecerá. Embora essa mulher, por mero capricho, tenha recusado o casamento, o Grande Rei Pedro é homem prudente e judicioso. De modo algum vai querer perder a alta honraria e grande vantagem de ser aliado da nossa casa e de ver o seu sobrinho e o seu sobrinho-neto no trono dos calormanos.
— Ele não verá isso se eu viver para sempre, como é sem dúvida o seu desejo, filho meu — disse o Tisroc, com uma voz ainda mais seca do que habitualmente.
Depois de um instante de embaraçoso silêncio, falou o príncipe:
— Além disso, pai-meu-e-deleite-dos-meus-olhos, forjaremos cartas da rainha, afirmando que me ama e que não sente o menor desejo de regressar a Nárnia. Pois todo mundo sabe que as mulheres mudam mais que catavento. E, mesmo que não acreditem nas cartas, não ousarão entrar com armas em Tashbaan para buscá-la.
— Esclarecido vizir — disse o Tisroc — queira esparzir sobre nós o seu sábio conselho a propósito desta estranha proposta.
— Eterno Tisroc, a força da afeição paternal não me é estranha e com frequência vejo que, aos olhos do pai, filhos são mais preciosos que diamantes. Assim, como poderei ousar desvendar-lhe todo o meu pensamento, em matéria que pode colocar em perigo a vida deste decantado príncipe?
— É claro que você vai ousar — respondeu o Tisroc. — Se não ousar, correrá pelo menos um perigo igual.
— Ouvir é obedecer — gemeu o desgraçado. — Saiba então, ó iluminado Tisroc, em primeiro lugar, que o príncipe não corre um perigo tão grande quanto pode parecer. Pois os deuses negaram aos bárbaros a luz da discrição: assim a poesia deles não é, como a nossa, cheia de máximas e ditos úteis, mas é uma poesia de amor e de guerra. Portanto, nada lhes parecerá mais nobre e admirável do que a insensata empreitada a qual este... ai!
Na palavra “insensata”, o príncipe dera-lhe um chute.
— Pare com isso, filho meu. E você, estimável vizir, quer ele pare ou não, de maneira alguma permita que a torrente de seu eloquente verbo seja interrompida. Pois nada assenta melhor a pessoas de gravidade e compostura do que suportar os males menores com resignação.
— Ouvir é obedecer — falou o vizir, revirando-se um pouco para o lado, a fim de colocar o traseiro fora do alcance do pé de Rabadash — nada lhe parecerá mais desculpável, se não estimável, ao príncipe, do que esta... hum... arriscada tentativa, especialmente por ser inspirada pelo amor da mulher. Portanto, se por desgraça o príncipe cair nas mãos deles, certamente não irão matá-lo. Mais ainda: pode ser mesmo que, embora não sequestre a rainha, à vista de sua grande bravura e da sua extrema paixão, os corações deles acabem por favorecê-lo.
— Está aí um bom ponto de vista, velho tagarela — falou Rabadash. — Muito bom, apesar de ter saído de seu bestunto.
— O louvor do meu amo é a luz do meu coração — replicou Achosta. — Em segundo lugar, ó Tisroc, cujo reinado deve ser e será eterno, creio que, com o auxílio dos deuses, é muito provável que Anvar caia nas mãos do príncipe. Se assim for, agarramos Nárnia pelo pescoço.
Fez-se uma longa pausa. A sala ficou tão silenciosa que as duas moças mal tinham coragem de respirar. Falou o Tisroc, afinal:
— Vá, filho meu. Faça como disse. Mas não espere de mim ajuda ou conivência. Não o vingarei se morrer, e não irei libertá-lo se o meterem numa prisão. E, caso fracasse ou triunfe, se verter uma gota a mais do nobre sangue narniano, e disso advenha a guerra, meu favor lhe será negado para sempre, e o seu irmão ocupará o seu lugar entre os calormanos. Agora vá. Seja rápido, discreto, e que a sorte o favoreça. Que o poderio de Tash, o inexorável, o irresistível, dirija a sua lança e a sua espada.
— Ouvir é obedecer — bradou Rabadash, que, depois de ajoelhar-se um segundo para beijar as mãos do pai, deixou rapidamente a sala.
Para grande desgosto de Aravis, que sentia câimbras horríveis, o Tisroc e o vizir permaneceram.
— Vizir, será certo que nenhuma outra alma sabe da reunião que os três aqui mantivemos?
— Senhor meu, não é possível que mais alguém o saiba. Por esta mesma razão propus, e a sua infalível sabedoria concordou, que era aqui, no Velho Palácio, que deveríamos nos encontrar, onde reunião alguma jamais foi feita e nenhum dos familiares tem ocasião de entrar.
— Muito bem. Se alguém soubesse, estaria morto em menos de uma hora. E também você, meu prudente vizir, esqueça tudo o que se passou aqui. Limparei do meu próprio coração e do seu também toda a lembrança em relação aos planos do príncipe. Ele partiu sem o meu conhecimento e sem o meu consentimento, não sei para onde, por motivo de sua violência, precipitação e rebeldia juvenis. Ninguém ficará mais surpreso do que nós, eu e você, ao saber que Anvar está nas mãos dele.
— Ouvir é obedecer.
— Por isto mesmo, você jamais pensará, lá no fundo do seu coração, que eu sou o mais duro de todos os pais, capaz de enviar o primogênito numa missão que lhe possa causar a morte. Por mais que isto lhe agrade, a você, que não ama muito o príncipe, como bem vejo no fundo da sua alma.
— Impecável Tisroc, se o comparo com o amor ao meu senhor, eu de fato não amo o príncipe, nem a minha própria vida, nem a água, nem o pão, nem a luz do sol.
— São elevados e certos os seus sentimentos. Também não amo nada dessas coisas, se as comparo com o poder e a glória do meu trono. Se o príncipe triunfar, teremos Arquelândia e talvez, depois, Nárnia. Se falhar... se falhar tenho mais dezoito filhos... e Rabadash, ao estilo dos filhos mais velhos dos reis, estava começando a ficar perigoso. Mais de cinco tisrocs em Tashbaan morreram antes da hora porque seus filhos mais velhos, esclarecidos príncipes, acabaram se cansando de esperar pelo trono. Melhor que ele esfrie o sangue no estrangeiro do que o afervente aqui na inação. E agora, meu excelente vizir, o excesso de minha aflição paterna está me levando para a cama. Mande os músicos para os meus aposentos. Mas, antes de deitar-se, revogue o perdão que assinamos para o terceiro cozinheiro. Estou sentindo dentro de mim prognósticos evidentes de indigestão.
— Ouvir é obedecer.
O grão-vizir engatinhou pela sala, levantou-se, abriu a porta, fez a reverência e saiu. O Tisroc permaneceu sentado e quieto no divã Aravis chegou a temer que tivesse caído no sono. Por fim, com grandes chiados e suspiros, ele alçou o enorme corpanzil, fez sinal para que os escravos o precedessem com as velas, e saiu. Fechou-se a porta. A sala estava novamente imersa em escuridão. As duas moças podiam afinal respirar de verdade.

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